2017

O QUE É A VIVÊNCIA?

Idealmente a obra de arte divide-se (ou une-se) em duas partes, a forma e o conteúdo, sendo a forma a imagem, aquilo que vemos quando olhamos a obra de arte, aquilo de que nos apercebemos no grau mais simples da percepção sensorial, o que captamos logo ali, pelos sentidos, pela visão sobretudo mas também pelo toque, etc. A forma está fortemente ligada à matéria de que a obra de arte é feita e é-nos oferecida imediatamente. A matéria, que não é teórica, é o que nos é apresentado na forma, de modo que quando estamos perante qualquer obra de arte, é a forma que nos indica de que matéria ela é feita. Assim, a forma está intimamente ligada ao espaço, à extensão, à volumetria. Mas idealmente, repetimos, a forma não se separa do seu conteúdo. O conteúdo é sempre aquele “algo mais” que percebemos na obra e que é transmitido pela forma. O conteúdo deverá ser lírico ou mítico, mas sempre teórico ou temático. Não está inscrito na matéria, como a forma, mas é o material (teórico e fundamental) da arte. Eventualmente apresenta-se como narrativa, como história inscrita na matéria (isto é, na forma). Serve isto para dizer que a forma não se separa do conteúdo na obra de arte. Forma e conteúdo não se excluem se a obra aspirar ao ideal de beleza, perfeição e integridade.

[repare-se como para os antigos gregos (e symbolon vem de symballein que quer dizer juntar) os símbolos são as duas metades de um objeto e simbólico é o ato de juntar as duas metades de modo a que ambas se pertençam mutuamente. Ora o símbolo não se dissocia daquilo que simboliza do mesmo modo que o signo não se dissocia do significado. Digamos que o símbolo é aquilo de que fazemos experiência porque estamos sempre na presença daquilo que ele simboliza. Temos experiência, isto é, sabemos o que o símbolo simboliza e isto com pouca margem de erro, ou melhor, com grande margem de “verdade”]

Mas será que é sempre assim? Muitas vezes quando olhamos para um quadro abstrato perguntamo-nos sobre o que significa. Percebemos a beleza da sua forma (ou formas), das suas cores, da sua textura, etc. Mas quando nos interrogamos sobre o seu significado, responde-nos um imenso silêncio (e ainda há, hoje em dia, pessoas que têm medo do abstrato). Não sabemos do que se trata e também a obra não nos apresentam seu conteúdo de modo claro e simples, como narração ou história contada. É minha convicção que este silêncio perante as obras de arte abstratas reflete ou é um sintoma daquilo que designarei por falta de experiência a que nós, modernos, estamos votados. Não temos a experiência que nos permitiria decifrar a obra abstrata. De igual modo o autor da obra, ao torná-la abstrata, confessa que não tem a experiência de a fazer significar. Ambos vivem apenas a forma, as impressões, as sensações e os afetos de que a obra está marcada e que a obra transporta (e isto de modo subjetivo) e não já o conteúdo, o tema, a narrativa. Já não temos a experiência do que significa: o único sentido que possuímos quando olhamos uma abstração (ou qualquer obra de arte contemporânea) é o sentido de uma vivência. Já não possuímos experiência mas apenas vivência. Como tal a nossa sociedade revela-se despida de conteúdos, de narrativas, de histórias, mas compõe-se unicamente de formas, as quais vivenciamos.

[E o que são então as formas? O livro de Henri Focillon, A Vida das Formas, que é um livro de 1943 mostra-nos bem que já só sabemos falar de formas e não de conteúdos. Como tal é também um livro que nos diz que da arte já não temos o seu conteúdo mas apenas as suas formas, que todo o conhecimento da arte é e só pode ser formal e não de conteúdo. Focillon diz-nos em primeira instância que a obra de arte “para respeitar provisoriamente os termos de uma oposição totalmente aparente. é matéria e espírito, forma e conteúdo”. Mas Focillon acaba for explicar que “seremos sempre tentado a procurar para a forma um outro sentido que não o dela própria e a confundir a noção de forma com a de imagem, que implica a representação de um objeto, sobretudo com a de signo. O signo significa enquanto a forma se significa.” Que nos diz o livro de Focillon? Que o signo (que tradicionalmente está inextricavelmente ligado a um significado) se apresenta agora vazio de conteúdo, podendo à forma que o alberga atribuir-se um qualquer novo significado. Uma vez que a forma (que é a vida da vivência) ultrapassa o equilíbrio que estabelecia com o conteúdo (que é a vida da experiência), então o valor do conteúdo é apenas um valor provisório, substituível. Assim, diz-nos Focillon que “à medida que os antigos significados vão desaparecendo, novos significados vêm juntar-se à forma. (…) Para mais, logo que surge, a forma é suscetível de ser lida de diferentes maneiras.

De facto, a falta de experiência que nos atinge tem lugar na Idade Moderna. Já Montaigne, o grande ensaísta do Séc. XVI, dizia no seu ensaio “Sobre a Experiência”: “Estudo-me a mim mesmo mais do que qualquer assunto. Esta é a minha metafísica. Esta é a minha física”. E Giorgio Agamben, o famoso filósofo nosso contemporâneo diz-nos em Infância e História (ensaio que tem como subtítulo “Sobre a Destruição da Experiência”): “Todo o discurso sobre a experiência deve hoje em dia partir desta constatação: ela já não se oferece a nós como qualquer coisa de realizável. Porque o homem contemporâneo, tal como foi privado da sua biografia, encontrou-se despossuído da sua experiência: talvez esta incapacidade de efetuar e transmitir experiências seja um dos raros dados concretos de que dispõe sobre a sua própria condição”. O homem contemporâneo apresenta-se como que balbuciando restos e fragmentos daquilo que outrora pertencia à autoridade da experiência.

[Agamben diz mesmo que nunca época nenhuma foi tão rica em acontecimentos significativos como a nossa. O que se passa é que já não sabemos fazer desses acontecimentos ou factos significativos uma experiência porque deles absorvemos apenas a sua forma, traduzindo-se esses factos em impressões e afeções ligeiras e efémeras. Porque a experiência era lugar de certeza absoluta do que qualquer coisa significava realmente e porque, juntamente com o peso que lhe conferia a tradição, a experiência vinha até nós revelando-se, descobrindo-se luminosamente como quando ao olharmos um símbolo imediatamente nos era revelado aquilo que o símbolo simbolizava. Obviamente que um símbolo é uma unidade sintética, esquemática e simples. Desta forma o que era revelado era o seu valor de conteúdo (temático) em perfeito equilíbrio com a sua forma dando-nos a verdade. Ora foi este equilíbrio que perdemos e da “verdade” já só temos um pequeno vislumbre de que alguém, num passado remoto, sabia o que “isso” era.]

Mas há algo que nós contemporâneos vivemos quando na nossa vivência dos factos passamos por fortes impressões: a vida contemporânea está repleta de violência e isso é inegável: na televisão e nas ruas a sociedade espelha a sua interminável violência. Todos nós, quero acreditar, nos sentimos uma vez por outra, verdadeiramente chocados com um sem número de acontecimentos. Temos portanto uma vivência recorrente do choque. Mas houve um primeiro poeta, dos primeiros a experimentar a contemporaneidade, que fez do choque a chave da sua poesia. Este poeta foi Baudelaire. Foi um dos primeiros poetas que eu li com interesse e lembro-me da forte impressão que em mim ficou do poema “O Albatroz”, a ave marítima que os marinheiros capturam para sua diversão, porque uma vez em terra essa ave perde toda a elegância do seu voo para se tornar frouxa e ridícula e ser aviltada por esses homens. Este poema resultou em mim num choque, bem como os outros, dir-se-iam “poemas da vida moderna” que constituem As Flores do Mal.

Houve um filósofo da primeira metade do séc.XX que talvez tenha sido dos últimos a perceber o que era a experiência e a denunciar a sua perda: foi Walter Benjamin. Benjamin escreveu sobre Baudelaire um ensaio onde retrata justamente a perda moderna da experiência e a sua substituição pela vivência e daí pelo choque. Diz-nos Benjamin que “quanto maior for a participação do momento do choque em cada uma das impressões recebidas, quanto mais constante for a presença da consciência no interesse da proteção contra os estímulos, quanto maior for o êxito dessa sua operação, tanto menos essas impressões serão incorporadas na experiência e tanto mais facilmente corresponderão ao conceito de vivência”. Assim vemos que o choque, pertencendo ao conceito de vivência, se demite da experiência, abandonando-a.

[Não é só para abandonar a experiência que Baudelaire se dedica à exposição do choque. De facto, Baudelaire fá-lo conscientemente, porque queria para si aquilo que mais nenhum poeta havia conseguido: compreender e incorporar a modernidade na poesia com um tal grau de contágio que fizesse do sentido do novo, o mesmo sentido que outrora se fazia do belo: elevando-o a um ideal. Daí que o primeiro ciclo das “Flores do Mal” se intitule, justamente, “Spleen et Idéal”, sendo Spleen no dizer de Benjamin, “o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência (spleen é de facto uma palavra inglesa para Melancolia). Mas o novo, essa massa de factos significativos que vivenciamos por vezes com alegria, por vezes já não sem uma certa ironia, outras vezes, porém, com angústia e dor, o “novo” é, de facto, aquilo que nos transmite o “choc” e que está nos antípodas da experiência e do conteúdo. Não esqueçamos que a poesia de Baudelaire é uma poesia da vivência, isto é, da forma e da imagem, sem verdade de conteúdo. Não é uma poesia romântica, idealista, natural ou moral, mas a de alguém que vivencia o quotidiano e que se demite da experiência (lugar não do presente, para Baudelaire, mas do passado)].

E o que é a vivência? Existe um grande livro escrito, fabuloso pela sua capacidade de visão, escrito nos anos 30 do século passado por Robert Musil. Chama-se O Homem Sem Qualidades e nunca nenhum outro título poderia revelar, com tanta acuidade, o tema da falta de experiência. Aí lemos: “Noutros tempos, ser-se uma pessoa provocava menos remorsos do que hoje. Os homens eram semelhantes a espigas num campo; telvez fossem mais abanados do que hoje por Deus, pela saraiva, pelos incêndios, pela peste, pela guerra; mas eram-no no seu conjunto, municipalmente, nacionalmente, como campo, e o que restava de movimentos à espiga isolada era qualquer coisa de claramente definido e do qual se podia tomar responsabilidade. Hoje em dia, pelo contrário, o centro de gravidade da responsabilidade já não reside no homem, mas sim nas relações das coisas entre si”. Esta última frase é de importância capital para a compreensão da moderna condição humana. O homem pode ainda ser um centro mas a responsabilidade de ser esse centro encontra-se disseminada, espalhada por um sem número de sensações, paixões, afectos e outras circunstâncias. A única construção possível do real (se é que tal coisa ainda existe) não pode já fundamentar-se na experiência que outrora nos unia como “espigas num campo” mas apenas em estabelecer entre as coisas as relações possíveis que nos ligam a todos mas já não como a verdade dos factos, apenas com as vivências que o pouco de experiência nos permite ainda partilhar. A compreensão do mundo e da vida por parte de cada um de nós, é um sentido que, por falta de experiência concreta, já não podemos explicar e comunicar. E assim resta-nos, a cada um de nós, uma compreensão pessoal e formal (isto é, sem conteúdo experiente) do que possa ser o real. O real de hoje é uma construção pessoal, individual até, baseada na vivência do mundo de cada um. E é uma construção porque toma forma apenas (e menos um sentido sólido) quando estabelecemos entre os factos mais ou menos significativos que vivenciamos, as correspondências criadoras de sentido. E assim a vivência da vida de hoje é aquilo que é feito de relações e de correspondências entre as coisas e os factos.

E isto é algo que é difícil de expor claramente, como o prova a moderna desvalorização do realismo. Os (na minha opinião) grandes pintores e os grandes novelistas do Séc. XX demitiram-se, de facto, da pretensão do realismo a explicar o que quer que seja e enveredaram (uns mais profundamente que outros) por uma interpretação abstracta do mundo. Por outro lado nós, comuns mortais, ao estabelecermos relações e correspondências entre os factos estamos, de facto, a ser criadores: porque cada um vive os factos à sua maneira e estabelece entre esses factos as suas próprias relações, cada um está, a seu modo, a criar e recriar constantemente não o mundo em geral, mas o seu mundo.